13

Bom dia, Paraíba

O alarme rasga o silêncio do quarto. Abafo o som debaixo do travesseiro, pra sofrer sozinha. Cinco, dez, trinta minutos. É hora. É cedo. É noite.

Segue um ritual previamente planejado. Acendo uma luz, apago outra. A toalha, a escova, a roupa, tudo em seu devido lugar. Qualquer erro custa uma saída de casa sem escovar os dentes.

Tudo calculado. Tudo no escuro.

Em quinze minutos. Não há tempo a perder às 3 da manhã. Na van, olhares cansados e “bons dias” sufocados entre os dentes. A turma da madrugada se reconhece em sussurros.

Caminho curto para o sono que demora a se acomodar no banco duro.

Um vigilante dorme na primeira esquina. Um moribundo vagueia na contra mão. Operários movimentam a ciclovia, na rotina insana de cruzar a cidade antes do nascer do sol.

Nos dias de festa, boêmios dançam entre os carros, zombando da sobriedade de quem não tem folga.

A cidade espreguiça. Se estica, aos poucos, no ritmo dos estalos da coluna do motorista.

Gazeteiros se organizam pra saída em massa. Bicicletas e jornais espalhadas pelo chão.

A descida é rápida. O barulho do ponto dá a largada. Restam menos de duas horas. Maquiagem, cabelo, roupa. Transformação. Tô pronta.

Lá fora, o primeiro sol das Américas ilumina a cidade narrada na TV. No ar!

Bom dia, Paraíba.

7

Café das 4

Eu já não queria estar ali. E ainda tinha pouco tempo para escolher um canto razoável onde eu pudesse viver. Sozinha.

A cidade encantadora pra tantos turistas me soava distante, fria, úmida. Não tinha trânsito, buzina ou engarrafamento. No lugar dos semáforos e prédios altos, ladeiras de pedra e casarões históricos, com pisos de madeira que rangiam sob o mais leve caminhar. Pra piorar, a internet era ruim. Precisaria dela com freqüência nos próximos meses.

A saga durou uma tarde. Tempo suficiente pra varrer a cidade toda. Na última parada, enfim, um sobrado de paredes verdes escondia um andar subterrâneo, de fundos, que dava vista para as montanhas.

Em cima, morava uma senhorinha sorridente, que costumava trocar algumas letras e inventar novas palavras. Dona Geralda era mãe emprestada de um padre da cidade, que há muitos anos trabalhava na capital e só aparecia nos fins de semana. Ela o tratava como filho e tinha orgulho em mostrar a foto dele, pendurada no hall de entrada. Já amarela pelo tempo, era envolta num rosário branco, com pedras grandes.

Numa cidade estudantil, aquele sobrado simpático, perto da Universidade já tinha visto muitas festinhas adolescentes, música alta e entra-e-sai até de madrugada. Agora, o ritmo seria outro.

Dona Geralda demonstrou alívio em ver que a nova inquilina estava ali a trabalho e não tinha cara de que ia transformar o apartamento na república universitária mais badalada da cidade. Depois de visitar inúmeros quartinhos escuros mofados e pensões mal encaradas, minha mãe estava feliz em estar ali. Dava pra ver no rosto dela a expressão de missão cumprida.

_ Que bom contar com a senhora! Obrigada! Obrigada! Obrigada!

No fim da tarde, despedimos. Voltaria de vez na segunda seguinte. Durante todo o fim de semana ela e meu pai tentaram me convencer de que o apartamento tinha sido enviado por Deus. Iluminado, com mobília completa e uma vista linda. Pra completar, Dona Geralda seria meu anjo da guarda na temporada que estava por vir.

Não foi fácil. Nem um dia.

Viveria nos próximos meses uma das principais provações da minha vida. A primeira vez fora da casa dos pais, fora da cidade natal, longe dos amigos e, principalmente, do namorado. A saudade do namorado era fatal. Esse negócio de namoro a distância nunca me caiu bem. Nunca achei normal um “boa noite” por telefone. Não me adiantava a varandinha, sem companhia. Nem a vista romântica das montanhas.

As manhãs eram empurradas durante o trabalho. Dava pra levar. Mas as tardes…. Ah, as tardes… Dona Geralda logo se encarregaria de ocupar algumas delas. Lá pelas quatro subia o cheiro inconfundível do café preto. Aliás, descia para o apartamento do subsolo. Era o meu convite. Subi uma vez. Duas. Três. Ela me contou que nunca havia se casado. Que o padre é que a havia adotado anos antes. E, a ele, devia a gratidão de uma vida.

Eu e ela tínhamos tempo de sobra.
Eu queria que meu tempo corresse. Ela, que esperasse.

Dona Geralda era do tipo cordial. Como toda gente vivida, tinha prazer em contar historias. Mas, também tinha perguntas. Tudo bem que repetisse algumas. Não é fácil mesmo entender o que se fazia no meu trabalho. Ainda bem que ela nunca perguntou do namorado. Eu não conseguia falar nele sem chorar. Pra ele, só mandava as bênçãos diárias.

Num dia, esbarramos no terreno vizinho, onde deixávamos os sacos de lixo. Boa tarde pra lá, pra cá, e quando vi estava dentro do quarto dela vendo fotos velhas. Ela preencheu muitas horas doídas de espera e de saudade.

Talvez tivesse sido mais fácil se eu deixasse ser. Talvez não seria tão sofrido me despedir de casa todo domingo a noite. Talvez eu conseguisse, sim, esperar o ônibus das 3 pra ir embora toda sexta, sem precisar pagar um motorista particular pra me levar correndo.

Hoje eu sei que o problema não era a cidade. Era eu. Tudo bem que subir um morro daqueles a pé não é uma delicia pra ninguém. Mas, eu não precisava ter encarado tudo com tantas pedras na mão. Tá certo que aquela TV não podia ser chamada como tal, tamanha a bagunça. Mas foi um ótimo aprendizado. Conheci pessoas bacanas. Inclusive D.Geralda. Principalmente D.Geralda. Se eu não estivesse tão fechada pro mundo, talvez teria me lembrado de pedir um telefone para ligar no aniversário. Mas eu nunca perguntei o dia do aniversário. Então no Natal. Ou, pelo menos, teria levado mais a sério o último pedido de sempre mandar noticias.

Aquele êxtase de minha mãe no dia que chegamos sempre me pareceu exagerado. Mas, não nego que ela estava certa. Dona Geralda foi mesmo um anjo.

13

Força e Fé

Foram vinte dias de passe livre no hospital. Eu cumprimentava a recepcionista e passava direto. Conhecia a enfermeira do pronto atendimento, a voluntária das quartas que servia pão e suco na fila de espera, o ascensorista.

O desafio não era dos mais simples. Uma série de reportagens sobre o maior Hospital de Câncer do estado. Em todas, uma missão em comum:

_ Eu não quero só o drama, quero uma mensagem de otimismo em cada uma delas. Terminar sempre pra cima! – orientou a editora-chefe.

Parecia difícil. Um lugar onde o povo atravessa a rua pra não passar em frente a porta. Uma doença que ganhou apelidos, pra não terem que dizer o nome. Mas, em pouco tempo eu ia descobrir que as historias nascidas ali eram muito mais revestidas de orgulho, que dor. Mais superação, que perda.

Logo no primeiro dia conheci Miriam. Um tipo que falava alto pelos corredores, com intimidade com os enfermeiros, abria e fechava portas com propriedade. Estranhei que mesmo depois de curada ainda fizesse do hospital parada frequente duas vezes por semana.

Na mesma sessão de fisioterapia estava Dona Luiza. Uma senhorinha do alto sertão que há alguns meses tinha feito uma mudança forçada pra João Pessoa para se tratar. D. Maria José, que venceu um câncer há 17 anos, sem traumas, mas não sem sequelas. Desde então, vivia sem o seio esquerdo.

_ Me perguntam se eu me sinto mutilada. Eu não! Eu sou completa. Não me falta nada.

Na sessão de fono, mais um banho de sabedoria. Seu Francisco era traqueostomizado há muitos anos. Tinha tirado o esôfago, depois de um tumor. Ele desenvolveu um tique com a língua, que ficou inútil depois da cirurgia. Quando viu meu microfone, quase entrou em êxtase. Com gestos, chamou a minha atenção. Mastigava a língua e emitia um som gutural, na tentativa de se fazer entender. Nada que o fizesse desistir. Num pulo, sacou o pedaço de papel do bolso, e escreveu:

_ “Fui locutor de rádio durante toda a minha vida. Meu sonho é narrar um gol do Brasil!”
_ E quando o senhor ficar bom, vai gritar como, seu Francisco?

A boca muda mexeu ao som imaginário de “il, il, il, il”, embaralhado no sorriso sonhador.

Conheci também seu Jorge, que fez da luta contra o Câncer roteiro para o primeiro livro, lançado na terceira idade.
Conheci seu Jonas que quis a fonoaudióloga como madrinha do casamento.
Conheci dona Iolanda que todas as terças e quintas colocava a saia mais bonita pra sessão de quimioterapia. Há anos.

_ Tá bonita hoje, ein Dona Iolanda?
_ Já viu o sol lá fora, minha filha? Dia lindo!

Até hoje desconfio que ela paquerava o senhorzinho da cadeira do lado.

Enrolei o quanto pude pra conhecer a pediatria. Tinha a impressão de que nunca estaria preparada. As paredes coloridas, imagens de lápis de cor nos corredores, bolas de todos os tamanhos nas salas. A princípio, sugeria que era mesmo necessário desviar a atenção.

Foram três dias mergulhada lá. Meu cinegrafista, pai há dois meses, me olhava com cara feia a cada vez que eu anunciava na porta:

_ Bom dia! Bora continuar a série.
_ Eu tenho filho pequeno, Patrícia, não tenho estômago pra`quilo.

Não achava no direito de me omitir. Se alguém vivia aquelas histórias diariamente há anos, como poderia me esquivar por algumas semanas?

Além do mais, as palavras da chefe ecoavam toda manhã.

_ “Terminar sempre pra cima!”

Um mantra.

No primeiro dia, conheci Franciele. Era tão pequena que, dormindo, parecia que a cama estava vazia. A cabecinha raspada se misturava ao algodão do edredon. Desde o nascimento, há menos de dois anos, já tinha enfrentado duas grandes cirurgias. A mãe sofria mais. Ela, na inocência de quem nunca tinha conhecido a saúde, não se abalava.

No segundo andar, aquela imagem angustiante de uma enfermaria lotada, típica de uma grande hospital público. Só que infantil. Crianças lotavam as macas, enquanto as mães faziam plantão nas cadeiras ao lado.

Ali, fiz uma entrevista inusitada. Não pelo conteúdo. Não porque era um menino de 11 anos que lutava contra o câncer desde os dois. Não porque ele já passado por um transplante fracassado. Nem porque ele já não tinha um dos maiores prazeres da vida: comer porcaria até se fartar. Mas, sim, porque ele sorria.

_ O que é que você sente?
_ O que eu sinto? Dor. Eu sinto dor. Aí mainha vai lá na enfermeira, ela traz morfina e a dor para num instante.

Sorriso dele.
Susto meu.

Não esperava que ele visse tudo tão simples.

A mãe adotou o menino. E também a batalha contra o câncer.

_ Eu não vou dizer que é fácil. É muito difícil. Mas, enquanto tiver uma chance, eu vou estar lutando.

Nos dias seguintes, reencontrei Isaías e dona Cida muitas vezes. Numa delas, o trabalho era nas outras alas do hospital. Na saída, avistei a mãe na janela no andar de cima. Enquanto ela tentava dizer alguma coisa, ele apareceu na porta. Uma corrida meio desengonçada, com o braço cravado no soro. Tinha dificuldade pra caminhar, um curativo pesado no pescoço, boca meio seca. E o sorriso. Sempre.

Me deu um beijo e saiu. Dona Cida chorava no andar de cima.

Depois que a série foi ao ar, duas amigas se encantaram por Isaías. Compraram um presente pra entregar no dia do aniversário dele, 25 de dezembro. Por algum motivo, não pude ir junto. Se eu soubesse, teria sacrificado qualquer compromisso.

Semanas depois, recebi várias chamadas do mesmo número, ainda de madrugada. Diante da insistência, atendi. O pai anunciava o fim da batalha. Isaías tinha sido vencido. A espera por um novo transplante tinha sido longa demais.

Quando, enfim, fui conhecer a casa da família, em Bayeux, o clima era bem diferente do que vi nas fotos do dia da entrega do presente. Isaías estava sendo velado na sala de casa.

Sorrindo.

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** Texto dedicado à Diana e Glaucia, donas de um coração de ouro, que deram uma última alegria a Isaias.

8

A espera

Ele só sabia dizer que sentia dor. Entre balbucios e sussurros. As pernas diziam mais. Trêmulas, se debatiam na maca. E aquela expressão estancada de susto, como quem acabara de ser atingido.

Já tinham se passado sete horas. E muitos médicos. E um bocado de enfermeiras. Fora aquelas pessoas que andavam em círculos, como se soubessem pra onde ir. E ninguém dizia nada.

De olhos fechados, ouvia um ruído. Nada inteligível. Um ruído com picos mais altos, feito uma coroa de palha, com os espinhos saltando pra fora. Um emaranhado de falas incompreensível.

De olhos fechados, ele esperava. Esperava por algo que não queria que chegasse. A demora nunca tranquiliza.

_ Notícia ruim chega rápido, meu amor. – Tentava a senhora.

Nada que diminuísse a frequência de batida das pernas. Se pudesse levantar, já teria invadido aquelas portas de faroeste, que tremulavam como asas de borboleta.

A mãe repetia o mesmo caminho até à recepção. A expressão da mocinha era a mesma de quem trabalhava em uma bilheteria de cinema.

_ Temos que esperar o médico, senhora. – Sentenciava, sem olhar pra cima.

Eu olhava de longe, naquelas desconfortáveis cadeiras alaranjadas. A história do dia não era tão dramática, como aquela que se passava no canto da sala de espera do hospital.

Eu tomava um chá de cadeira homérico do chefe do setor de queimados. Mas era incapaz de reclamar. Minha espera terminava na solução. A dele, provavelmente num problema.

O primeiro enfermeiro chegou manchado de sangue. Aquela borra vermelha tampava o nome do hospital, no meio do peito. A cena, pra mim, se passava em silêncio. De longe, o profissional queria a perna do acidentado, como quem faz sinal pra pedir esmola. Ao contrário da benevolência de quem dá as últimas moedinhas, ele encolheu a perna, num ímpeto incalculado. Uivou de dor. Mas recusou a ajuda.

A senhora ficou com os comprimidos e a missão falida de convencê-lo a tomar. A espera continuaria.

Uma redoma de silêncio e dor abrigava aqueles dois.

Chegava a hora de mais uma caminhada da mulher em vão até a mesa central. Fingi também precisar de ajuda, para chegar mais perto. Mais uma vez, a recepcionista não tinha nada a dizer. Mas, o que a levava ali não era a esperança de alguma noticia. Era só alguém que pudesse fazer o relógio passar mais rápido. Pra isso, eu podia servir.

_ Ô, minha filha, a esposa dele está lá dentro. Ele pilotava a moto, que bateu no poste. Recém casados, tão jovens. Ele está muito machucado, mas minha nora foi socorrida inconsciente.

Mais que o medo de conhecer a saudade eterna, ele temia conviver com a culpa.

_ Saíram da minha casa, dizendo que voltariam no fim de semana. Estavam tão felizes…

Dei a minha mão a ela. Olhei nos olhos. E nenhuma palavra. Queria poder prometer o final feliz, mas falsas esperanças podem aumentar o tamanho da queda.

Macas cruzavam a minha frente. Gente entrando e saindo. Os gemidos dos pacientes se misturavam com as informações trocadas aos berros por enfermeiros e socorristas.

_ Arma de fogo!
_ Acidente, fratura exposta, paciente orientado!
_ Criança, queimadura, do interior, tempo demorado de resgate!

Histórias como aquelas se repetindo aos montes.

De repente, nem para passar o tempo daquela senhora eu servia. Inútil diante do que os próximos minutos reservavam. Esperava que o entrevistado me chamasse, na mesma intensidade que queria saber o fim do capítulo. Curiosidade e compromisso dividiam meu tempo.

A demora – que também era minha – foi interrompida pelo som estridente do toque padrão de ringue fone.

_ Pode voltar. Vou precisar da sua equipe. Diz pra assessora que a gente liga depois.

Num impulso, corri pra sala de imprensa. Dei o recado e fugi. De repente, era a minha chance. Do interesse à covardia em um telefonema.

As respostas que eu não saberia, poderia imaginar.

Fui embora antes que surgisse o médico com algum boletim.

Rezei e só.

8

Thereza

Maria Thereza Soares Rocha.

É a minha avó. E de mais sete netos. E de alguns sobrinhos-netos emprestada. Vivi ao lado dela por toda a vida. Hoje, moro a 2.500km de distância. No dia da avó me permiti desviar um pouco da teoria do blog e copiar aqui o texto que escrevi para o dia da festa de 80 anos dela.

Meus mais sincero e apaixonado abraço a todas as vozinhas, na pessoa de D.Thereza.

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“Charles Chaplin disse uma vez que a maior injustiça da vida é a maneira como ela termina. O verdadeiro ciclo estaria todo de trás pra frente. Nós deveríamos nascer velhos!

Daí viver num asilo, até ser chutado pra fora de lá por estar muito novo. Ganhar um relógio de ouro e ir trabalhar. Então você trabalha 40 anos até ficar novo o bastante pra poder aproveitar sua aposentadoria. Aí você curte tudo, bebe bastante, faz festas e se prepara para a faculdade.

Você vai para colégio, tem várias namoradas, vira criança, não tem nenhuma responsabilidade, se torna um bebezinho de colo, volta pro útero da mãe e passa seus últimos nove meses de vida flutuando.

Pelas minhas contas, você chegou nessa fase ai… “Vira criança”! Mas, calma!, não na lógica de Chaplin. Porque não há uma contagem regressiva.
Dona Thereza desafia o tempo. Quem, aos oitenta anos, faz mais viagens que os netos? Toma a frente em um campeonato de carteado com mais de vinte pessoas, organiza jogos, partidas e faz contas? Quem, aos oitenta, se aventura no primeiro grande desafio literário e conta detalhes de décadas atrás, de fazer inveja à memória de tanta garotinha? Quem tem a ousadia de ignorar os avanços tecnológicos e mantém a disciplina de encaminhar cartinhas aos parentes mês a mês? Aliás, a tal da disciplina… Ou seria tradição?

Sorte de quem tem a chance de ser sorteado por ela no amigo oculto de Natal. É sempre o ponto alto da noite! Porque muito além do presente, os versinhos rimados são o maior orgulho. Que neto não torceu pra ver o coelhinho entrando na casinha de papelão da véspera da Páscoa? Quem não esperou ansioso pra dar sua paulada no Judas ou bater lata na noite de Carnaval?

A tradição é um jeito simples e contagiante de ensinar. Ensinar a convívio, o prazer da companhia. Ensinar a valorizar a importância da família reunida. Todos aqui, provavelmente, alguma vez pelo menos já foram envolvidos em um desses eventos. E, por isso, sabe que nada pode fugir ao script!
Cada capítulo daria um filme a parte.

Os amigos vão se lembrar dos telefonemas atenciosos, e da parceria de anos e anos a fio.

Os irmãos tem inúmeras histórias pra lembrar de viagens, conversas e encontros. São cúmplices, que trocam relatórios semanais com notícias detalhadas sobre cada um dos sobrinhos, primos, primas, netos e bisnetos.

Os netos morrem de orgulho de lembrar da família que construiu. Cada um, a sua maneira e a seu tempo, aprendeu a valorizar o que foi erguido juntos, sempre em família.

Os filhos rezam todos os dias. Os maiores fãs da protagonista. Você, hoje, altiva, feliz e com saúde é o verdadeiro Óscar vivo!

E como todo roteiro de cinema, este também tem uma história de amor. Esta é a cena do filme em que seu príncipe encantado lhe olha de longe, sem ser observado. Ele sorri pelo seu sucesso, pela felicidade e agradece a Deus pela sua vida. O seu príncipe agora está muito orgulhoso pelo caminho que vocês começaram a trilhar juntos lá nos idos da década de 20 e até hoje você o mantém, com força e punho de uma guerreira!

Todos aqui já foram, então, personagens desse roteiro que completa oitenta anos. Nada mais genial e fascinante do que o autêntico roteiro da vida. E a estrela principal é, hoje, uma criança! A vitalidade e a energia de quem tem muita estrada pra percorrer. O brilho nos olhos de quem ainda está descobrindo novas experiências. E até a ousadia de quem não tem medo de dizer o que pensa.

Vó, se Chaplin estiver certo, você está no auge! A vida começa agora! E daqui pra frente, nem se preocupe, você vai ter muitos e muitos braços para te carregar no colo.

Amamos você!”

5

Um sonho intenso, um raio vívido

Seria só mais uma viagem. O que, pra mim, nunca era pouco. Cento e cinquenta quilômetros separavam meu mundo real dos bastidores dos sonhos.

As ruas tinham outras cores. Eu quase ouvia a trilha sonora caminhando sobre o calçadão com a famosa pintura de ondas. Um universo rosa. Eu realmente acreditava que era possível viver entre as vinhetas.

Era domingo, era cedo. Avenidas a beira mar fechadas para patins, bicicletas e animais. Mas, naquele dia de 2003, uma multidão ocupava meia pista no Leblon. Produção televisiva com um quê de espontaneidade. Atores ao centro, o povo de verdade ao redor. Encenavam uma passeata em nome da paz, num protesto fictício contra um tiroteio que matara uma mulher e deixara um homem paraplégico.

Tony Ramos encabeçava o movimento, sentado numa cadeira de rodas. Eu acompanhava tudo pela lateral, maravilhada com a visão do meu mundo paralelo, encenado tantas e tantas vezes no silêncio do meu quarto. Já bastaria. Mas, ao aceno do diretor, atores puxaram em coro o hino nacional e foram imediatamente seguidos pela massa que acompanhava. Até hoje penso se todos ali sabiam que era uma gravação. Homens pobres entoarem os versos, segurando um pedaço da camisa junto ao peito, com a força de quem agarravam uma medalha de ouro. Choravam entre as palavras certamente indecifráveis de Duque Estrada. Pessoas que não dormiriam numa casa na zona sul, como a maioria dos atores, mas cantavam com mais convicção do que a maioria dos contratados globais. Porque era de verdade. Era o orgulho de ser brasileiro transbordando dos olhos e flagrado para a novela das oito. Era a revolta pela insegurança que, de fato, os atingia.

Não era aquela realidade de violência que me fazia sonhar no interior de Minas. Mas foi a cena mais emocionante que vivi naquela cidade. Chorei junto. Nem pela violência, nem pela emoção de ver os atores, mas pela sinceridade surpreendente com que brasileiros bradavam o hino.

Não vi no ar. Qualquer narrativa seria pequena perto da emoção real.

Demorou dez anos para a mesma cena voltar à TV. Mas já sem roteiro ou manifestantes contratados.

Dessa vez, milhões de pessoas pelo país iriam sentir o mesmo que eu. Mas eu, não mais. Agora, eu era personagem. Fantasia de jornalista e alguns pensamentos censurados internamente. As imagens que antes vi no calor do cenário, agora chegavam compactadas em discos à redação. Via todas com a fome de um prisioneiro que devora o primeiro prato de comida da manhã. Era a minha forma silenciosa de gritar.

No dia seguinte, me cabia narrar o despertar de um gigante.

Agora, toda uma geração tentava reconstruir o mundo rosa que, um dia, só existiu na minha cabeça.

12

Fernanda

_ Alô! Eu queria fazer um pedido, por favor?

_ Pois não?

_ É, são duas empadinhas de carne seca com catupiry….

_ Sim?

Pausa.

 _ Senhora?

 Um sussuro.

 _ Olha, estão dizendo que Fernanda está morta!

 _ Senhora?

 _ E mais uma de camarão.

 _ Sim.

 Tampa o bocal do telefone.

 _ No quintal do vizinho!

 _ Como, senhora?

 _ E duas de chocolate…

 _ Qual o endereço?

 Silêncio.

 _ Dizem que está enterrada!

 _ Senhora?

 Não sei o que eu disse. Naquela noite, a empada teve gosto de pasta.

 Era noite. Como sempre, informação nenhuma era confiável. Mas eram as primeiras… em noventa dias! Na manhã seguinte viriam as certezas: os laudos, as falas oficiais, as entrevistas coletivas.

 Três dias antes, eu tinha estado com os pais da menina. Cidadãos humildes da periferia cercados de deputados numa CPI nacional. Ternos, holofotes, discursos efusivos na tribuna. O nome da menina vociferado ao microfone. Pensaram em tráfico internacional de pessoas. Depois de tanto silêncio, qualquer suspeita era reconfortante.

 _ Se for, é bom porque é uma pista pra Polícia. – confessou o pai.

Bom seria se fosse mais uma história de novela. A vida supera a arte. Atenções voltadas pro outro lado do oceano e ela a quinze metros do muro,

Semanas depois do sumiço, eu visitei a casa da família pela primeira vez. A rua pacata agora se acostumara com sirenes da polícia, viaturas levantando poeira e o plantão da imprensa. Fui recebida pelo nome e convidada a subir. Cruzei com a avó na sala. Aos prantos, me deu um abraço. Acho que cairia nos braços de qualquer um que pudesse proporcionar algum tipo de conforto. Eu não podia. 

A filha mais nova acostou a avó de Fernanda numa cadeira de balanço. Ela olhava para os lados como quem queria um beliscão que a puxasse para uma outra realidade. Uma pergunta qualquer foi a deixa para que soltasse angústias presas há dias. Foi um discurso. Sem interrupção. Sem novas perguntas.

Ela pedia o direito de ter notícias. Que fossem ruins. Mas que fossem reais. Ela queria saber se a neta dormia bem. Se comia bem. Se já tinha escovado os dentes. Se lera antes de dormir. Se fizera a lição de casa.

O pai conquistou passe livre nas viaturas da polícia. Rondava com os militares durante a madrugada. A mãe sumiu da imprensa nos primeiros dias. Depois, achava que quanto mais gritasse, mais chaces teria de ser ouvida. A tia chorava a frieza com que tripudiavam da dor da família. Trotes intermináveis, durante a madrugada que ilusoriamente faziam reacender a esperança da família por instantes. A cada vez, o tombo da farsa era maior.

Toda a família teve que ouvir insinuações de que Fernanda fugira.

_ Ela foi embora com um namorado!

_ Ela fugiu com um caminhoneiro!

_ Ela foi raptada em troca da dívida do tio com traficantes!

Ao longo de noventa dias, reencontrei a família por várias vezes. Vi o semblante de pânico virar consternação. Desespero, angústia, preocupação, dó, solidão, saudade. E só saudade.

Ao fim de três mês, queriam pelo menos a oportunidade da despedida. A dor da perda oficialmente compartilhada num cemitério. Queriam o direito de enterrar Fernanda. Enterrada, Fernanda já estava.

9

Pra onde vai?

Duas mulheres.
Duas professoras.
Duas tragédias.
Do dia para a noite.

No mesmo cemitério. A mesma sala onde velaram uma, receberia a outra, dez dias depois.

Nenhuma entrevista traria alguma novidade. Era só a ressaca da dor. Não quero choro, não quero drama. Quero lembrar do caso no dia seguinte. Quero dar nomes às estatísticas.

Bríggida foi assassinada dentro de casa. Esgoelada, no chão do quarto. Deixou uma filha pequena, uma mãe devastada e amigos de trabalho em choque. Amigas da mesma idade estampavam incertezas nos olhos úmidos. A juventude roubada, feito balinha de recepção.

Zélia ia pra festa. Planejaram um fim de semana em família. Num dia, sonhavam com o forró sertanejo. No outro, enterravam a caçula de sete irmãos.

No velório, o maior desafio é escalar o primeiro muro. O que em outros tempos seria um privilégio ou uma boa vitrine, agora é uma invasão de privacidade. A luz acesa no semblante da dor nunca é bem vinda.

Percorro os olhos para identificar os ombros mais pesados. Pra onde as atenções se voltam. A morte deixa um vazio no meio e transborda dos lados. Sobra saudade de quem vai e preocupação com quem fica.

Em poucos segundos tenho que achar quem me autorize a entrar. Reconheci o senhor por trás dos óculos. O irmão da professora já tinha dado uma entrevista antes. O microfone sempre nas mãos para que eu não precise me apresentar. Inevitáveis olhares de incompreensão.

_ Meus sentimentos. Que Deus conforte o senhor e toda a família.

Depois disso é esperar a reação. Ou reconstroem o muro em segundos ou deixam as pedras no chão. Eu tinha o aval da família.

Um aceno e meu cinegrafista sabia o próximo passo. Cada gesto meticulosamente pensado. Cada palavra. Um escorregão e soaria oportunismo barato. Era preciso manter de pé a minha carcaça profissional. Frágil, mas indispensável. Eu não conhecia aquela mulher, a não ser pelas pautas do dia anterior.

Eu me lembro de não chegar perto do caixão. Nunca. Um código interno e intransponível. Se a imagem não acrescenta como informação, tampouco servirá como curiosidade. Deixo a lembrança para quem é de direito.

Uma família manca. Amigos entorpecidos.

É sempre incômodo ver um homem chorar. Mas aquele parecia não se importar com a imagem que passava. Contou que a irmã não tivera filhos. Por anos, morou com o marido na casa da mãe, que havia morrido meses antes.

_ Essa era a missão dela. Cuidou de mamãe até o último dia. Pena que não nos despedimos, mas elas estão juntas agora.

Sorte de quem consegue ver lógica na morte ou razão na vida. A ignorância é uma benção. Certas coisas melhor não saber.

12

Tudo bem

Chegou a hora de trocar o calendário.

E tudo bem que pareça muito cedo.

Se não deu tempo de cumprir aquela velha promessa firmada de pé junto à beira mar, no réveillon. Você continua com uns quilos a mais. O mesmo livro permanece na cabeceira. E você ainda passa as noites de sábado sozinha.

Olhar pra trás é perceber que as suas promessas se renovaram a cada semana. Tudo bem.

Pelo menos aquele diagnóstico foi muito mais fácil de engolir do que você imaginava. O tratamento deu certo. As visitas constantes ao médico agora fazem parte de uma vitoriosa história para contar.

Mas tudo bem se uma tarde improdutiva de segunda foi seu último dia no trabalho. Se sua corrida por uma vaga na universidade se perdeu no caminho. Se a tão sonhada poupança naufragou a cada fim de mês. A viagem dos sonhos não saiu dos panfletos das agências. E as fotos ainda esperam no tempo e no espaço pelo clique.

Pelo menos, a vista pra rua ganhou novas cores. Depois de anos, os vizinhos venceram no grito. Você agora entra e sai da garagem com mais dignidade.

Agora, tudo bem se depois de longos doze meses, suas várias tentativas de aumentar a família ainda não vingaram. Se você tentou, ligou, procurou, mas ainda não teve resposta. Mais uma vez, o ano-novo vai chegar sem aquele abraço que falta.

Mas que ninguém diga que você perdeu a fé. Nada abalou sua crença em dias melhores. Mesmo que seus pedidos e suas conquistas não tenham sempre coincidido, você soube diferenciar o que queria, do que precisava.

Tudo bem que seu ano tenha durado demais.

Deu tempo de provar alguns sabores nunca antes pensados. O salgado da empresa que faliu. A doce surpresa da família que repentinamente cresceu. Ou o amargo daquela que finalmente ruiu. Vão mudar o seu sobrenome, seus registros civis e você vai ter que explicar pros filhos que ele não vai voltar nessa noite.

Tudo bem.

Até mesmo se você agora engole em seco, sem gosto, depois que o ano lhe impôs a ácida experiência da despedida. Se aquela gargalhada alta agora é só um retrato na estante. Ainda assim, acredite, tudo bem.

Porque um novo ano chega com a promessa de renovar a sua esperança. Por mais que seus planos e sonhos agora pareçam longes demais, o sol vai voltar amanhã com o mesmo brilho e a missão de lhe encher de força e coragem.

E você… terá sempre uma nova chance de fazer tudo bem.

17

Condenado

Mais um plantão de sábado. Eu imaginava qualquer pauta na linha cabelereiro-unhas-tendências-pro-verão.

Mas era o Dia Mundial de Luta Contra a Aids.

Fui para a Casa de Convivência, que dá apoio aos portadores da doença. Um professor, alto, bonito. Com mestrado, aluno especial do doutorado, funcionário público federal.

Na sala de aula, sentiu fortes dores no peito. No hospital, o diagnóstico de pneumonia. Foi o próprio médico que instigou:

_ Você não está se perguntando por que você, com 31 anos, teve uma pneumonia?

_ Não. Acho que é porque em Campina Grande é mais fresco e eu sempre tive muitas alergias.

Mas uma dúvida assim não esfria.

A confirmação veio mais de um mês depois. Um papel com o nome completo dele, ao lado do fatídico “Reagente para o vírus HIV”.

O depoimento do que foram os dias seguintes podia ser o pano de fundo da história de qualquer dependente químico que mergulha no precipício, em queda livre.

A recusa.
A depressão.
A família.
O preconceito.
O abandono.

Numa sequência assombrosa.

Quando ele contou para o namorado, o pânico de que também pudesse estar contaminado o fez tomar dezenas de comprimidos. Seis meses depois, os exames confirmariam que, no sangue dele, o vírus não circulava. Mas, boa parte deste tempo, ele esperou, em coma, no hospital.

_ Inclusive, neste mês, ele vai se casar… Com uma mulher! Desistiu de ser gay – disse com um sorriso irônico, de canto de boca.

Ele viveu a adolescência na década de 90. A doença que agora tinha nas veias era a mesma que matara os grandes ídolos Cazuza e Renato Russo. Uma condenação eterna por uma doença sem cura. A sigla que o acompanharia pra sempre.

O trabalho na sala de aula ainda era a única ponte com o mundo casto que ruiu depois do diagnóstico. Mas não duraria muito tempo. O coquetel com mais de dez comprimidos diários exigia obediência aos horários. Uma vez, precisou tomar na frente dos alunos. Parecia um bandido novato, ansioso na hora de apontar a arma para um inocente. Tenso, como quem cometia um crime sem perdão.

_ Na hora que abri a bolsa, a caixinha com os remédios espatifou no chão. Aquela bolinhas coloridas rolaram por todos os lados. Comecei a chorar, com as mãos trêmulas, sem conseguir recuperar todas. Nunca mais voltei naquele colégio.

Ali perdera o último restolho de honra.

A festa acabou, a luz apagou e o povo sumiu. E agora?

_ Eu não tinha coragem de me matar, mas também não tinha vontade de viver. Entrei nesse abismo existencial.

Não era digno de voltar à escola. Não era bom o bastante para a família. E todos os cantos da casa lembravam a vida que não tinha mais. A saída foi a rua. Só a sujeira, o frio e o relento montavam o ambiente que ele merecia no mundo.

_ Um dia eu dormia sob uma marquise na Lagoa, até que uma travesti chegou gritando, me pedindo pra sair, porque era o ponto onde ela fazia programa. Eu disse: “Minha amiga sai pra lá, eu tô fodido, tô com Aids, não me arruma problema”.

E eis que a nega desceu do salto e disse que também era soropositiva. Foi ela a primeira a falar sobre uma casa de acolhimento para as vítimas da doença. A dica só foi usada tempos mais tarde, quando caiu, num colapso, fraco, magro, numa esquina qualquer.

Cerca de um ano e meio depois ele ainda se equilibrava no compromisso de assessorar a casa e coordenar a ONG que reúne vítimas de todo o Nordeste.

_ Você descobriu, então, uma nova missão pra sua vida? – perguntei esperançosa.

_ Não é missão – disse, taxativo – É bem egoísta. Eu faço por mim. Se eu ficar um dia em casa sozinho a depressão volta com a mesma força. É uma forma de eu esquecer. Eternamente na corda bamba.

Durante a conversa rejeitei várias ligações no celular. Um toque discreto por baixo da almofada. Nada que pudesse interromper o ritmo da narrativa. Nada mais genial e fascinante do que o autêntico roteiro da vida real.

Mas eu tinha um prazo a cumprir. A história que me hipnotizou precisava ser contada.

Na saída, entrei no carro e imediatamente mandei uma mensagem para minha editora: “Se você me der só um minuto e meio eu te mato!